Com o sociólogo Edgar Morin aprendi que os encontros sociais, da grande maioria da população, se davam atrás das igrejas onde os mortos eram enterrados. Assim, em certas regiões da Europa na Idade Média, ao lado de cadáveres comia-se com naturalidade um churrasquinho, tomava-se algo equivalente a nossa cervejinha, contava-se histórias, ria-se, e, imagino eu, que as crianças corriam sorridentes de lá para lá, enquanto os adolescentes se paqueravam. São costumes de época, o que é estranho e inconcebível para nós, fora natural para eles.
Seguindo essa ótica, me nasce a esperança e meu coração se enche de um reconforto aquietador: creio sinceramente que nos séculos futuros não haverá mais “O culto ao sofrimento”, “O mérito em sofrer”. Apesar de ser desta época, não posso compreender, nem aceitar como a grande maioria das pessoas, no Brasil e no Mundo, carrega o sofrimento da mesma forma que um rei carrega uma coroa, e a mostra como um atleta olímpico exibe seu troféu: com plena glória e satisfação.
Refiro-me a homens e mulheres que partilham preferencialmente, e com certo entusiasmo, problemas, desgraças, sofrimentos de maneira tão prolongada e contínua, que eu até desconfio que sintam, misteriosamente, um prazer nisso.
Prazer em sofrer, prazer em ver o outro sofrer, prazer em causar sofrimento, prazer em falar do sofrimento...serão resquícios da Idade Média onde assistia-se a enforcamentos, decapitações, chicoteamentos como espetáculos de lazer e diversão?
Hoje, com vestes diferenciadas, o sofrimento continua a ser cultuado: nos filmes, noticiários, na mídia; a violência, a pobreza e a dor continuam a ser o grande espetáculo mundial. Também podemos observar esse fenômeno na nossa vida cotidiana: são familiares, amigos, colegas de trabalho que mantêm o culto ao sofrimento através, por exemplo, das apostas implícitas para ver quem sofreu mais. Um, diz que ficou dois meses sem poder mexer a perna, o outro rebate dizendo que tem enxaqueca e as dores são insuportáveis. O primeiro, inconformado por sua dor ter sido diminuída, rebate ainda com mais força dizendo que além de não poder mexer a perna, devia tomar uma injeção diária que era muito, mas muito dolorida: a maior ofensa é alguém ter sofrido menos que você, não senhor!, você vai provar que, sim, você sofreu mais. É o mérito em sofrer.
Vitórias, alegrias, são como migalhas que sujam a mesa e rapidamente devem jogadas no chão, para não serem vistas, para passarem desapercebidas. Para o sofrimento, no entanto, está guardado um lugar no pedestal, para ser visto à longa distância e por todos.
Sofrimento merece compaixão, solidariedade, sem espetáculos de mídia, sem prazeres pessoais em divulgá-los. São momentos que pedem isolamento, o apoio de um ombro amigo, o apelo ao Divino. Mesmo que não entendamos a razão do sofrimento e que não possamos nos livrar dele, de todo, por toda uma vida, faço votos que ele seja algo ruim, para ser superado, esquecido e não um troféu para momentos especiais, um motivo para exigir mais respeito ou uma arma secreta para impor algum tipo de poder. Que finquemos mais passos para que os costumes das próximas épocas sejam o de cultuar e de dar méritos às vitórias, à boa saúde, à alegria e à felicidade.
Verônica Böhme