CHEGUE NA PAZ

6 de mar. de 2012

Patch Adams - Doutor & Palhaço

O médico americano cuja vida virou filme diz que o humor e a esperança são bons
auxiliares no tratamento dos doentes.

Quem vê o médico americano Patch Adams com nariz de palhaço e cabelos coloridos pode achar que ele acabou de sair de um circo. É quase isso. Há três décadas, Adams transforma os quartos dos hospitais que visita em um verdadeiro picadeiro. Sua especialidade é animar pacientes com brincadeiras para reduzir o sofrimento deles.

A vida de Adams foi retratada em 1998 no filme O Amor É Contagioso, com o ator Robin Williams no papel principal, e serviu de inspiração para o surgimento de vários grupos doutores da alegria, espalhados pelo mundo. O médico é autor de três livros, dois deles publicados no Brasil. Neles, Adams defende sentimentos como humor, compaixão, alegria e esperança no tratamento de pacientes e diz que o medo que os médicos têm de cometer erros destrói a relação médico-paciente.

Aos 58 anos, Adams dirige o Instituto Gesundheit (saúde, em alemão), nos Estados Unidos, que atende pacientes de graça. Também dá palestras e cursos em vários países. De Arlington, cidade onde mora com a mulher e dois filhos, Adams concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – O filme O Amor É Contagioso mostra o senhor como um médico que se preocupa muito com os sentimentos dos pacientes. O senhor sempre foi assim?

Adams – Nem sempre. No fim da adolescência, não me preocupava com ninguém. Devido à morte de meu pai, ao suicídio de um tio muito querido e ao fim de um namoro, comecei a ficar obcecado pela idéia de morrer. Cheguei a tomar vinte aspirinas de uma só vez, tentei pular de um precipício. Até que um dia pedi a minha mãe que me internasse em um sanatório mental. Lá, conheci gente que estava tão pior que eu que fez minha dor parecer trivial. Eram pessoas que sempre viveram com raiva e desespero. Essa experiência me fez perceber quanto as emoções podem influenciar em nossa vida, seja de forma positiva ou negativa. A partir de então, comecei a dar mais importância aos sentimentos das pessoas.

Veja – Estudos mostram que emoções como o perdão, a alegria e a esperança podem acelerar o processo de cura. Mesmo assim, muitos médicos não se preocupam com isso. Por que eles são tão resistentes a essa idéia?

Adams – Os médicos tendem a esconder os sentimentos porque acham que ficarão vulneráveis se demonstrarem qualquer tipo de emoção. Antigamente existia o médico da família, que ia até a casa de seus pacientes, ouvia com atenção os problemas de cada um e conhecia cada integrante da família pelo nome. Hoje, o paciente é tratado como cliente de loja, que paga para obter o serviço. O amor passou a não ter espaço na área médica. Se o médico gasta tempo com amor, não tem retorno financeiro algum. Só ganha dinheiro se dá um remédio ao paciente ou faz alguma intervenção cirúrgica.

Veja – Em seu livro A Terapia do Amor, o senhor diz que os médicos, em sua maioria, se sentem como se fossem deuses.

Adams – Na verdade, é a sociedade que exige do médico que ele aja como se fosse um Deus. Espera-se que ele faça milagres e não erre nunca. Isso é impossível. Como todo ser humano, o médico pode errar. Essa idéia de que o médico tem de ser perfeito também prejudica a relação com o paciente. Faz com que este coloque toda a responsabilidade do que ocorre com ele nas mãos do médico. E isso é errado. O paciente é mais responsável pela própria recuperação do que o médico que o está tratando.

Veja – Como assim?

Adams – A maioria dos problemas de saúde ocorre por causa do estilo de vida inadequado do paciente, pelo sedentarismo e pela má alimentação. O médico geralmente só é procurado quando a doença já está em estágio avançado. O grande problema é acreditar que a medicina e a ciência têm a resposta para todos os nossos problemas. Não é verdade. Muitas vezes, a solução está em casa, nos pequenos hábitos do dia-a-dia.

Veja – Que conselhos o senhor daria para os médicos se tornarem melhores profissionais?

Adams – Medicina envolve relacionamento entre médico e paciente. Um bom médico é aquele que sabe cultivar essa relação por meio da troca de experiências, amizade, humor, confiança. Se existe desconfiança de um dos lados, essa relação vai por água abaixo. O grande problema da medicina é que os profissionais da saúde se sentem cobrados demais, acumulam várias funções e acham que não são devidamente recompensados por isso. A possibilidade de haver processos contra erros apavora os médicos, e a desconfiança destrói a relação médico-paciente.

Veja – Qual é o papel dos pacientes nessa relação médico-paciente?

Adams – O paciente precisa ter um sentimento amável e verdadeiro em relação a si mesmo. Não há nada pior que um comportamento autodestrutivo no processo de recuperação. É necessário ser um paciente paciente. A medicina não é como um sistema fast food, em que todas as necessidades são rapidamente resolvidas. Por isso, é importante escolher bem o médico, porque é preciso ter confiança nele. O médico demora muito para atender? Peça a ele que agende menos consultas. O paciente tem esse direito.

Veja – Qual é a importância da fé na cura de um paciente?

Adams – Em muitos casos, é mais importante que qualquer pílula ou intervenção cirúrgica. O paciente com fé tem uma capacidade maior de entrega, o que lhe traz conforto em todas as situações. Isso também vale para os familiares de doentes terminais. Quando comecei a trabalhar como plantonista em hospitais, descobri que as famílias que seguiam alguma religião se sentiam mais calmas quando rezavam do que quando tomavam algum tranqüilizante. A partir daí, procurei sempre descobrir se os familiares do paciente seguiam alguma religião. Em muitos casos, até rezava com eles.

Veja – Em sua opinião, é necessário seguir alguma religião para ter fé?

Adams – De forma alguma. Eu, por exemplo, tenho fé, mas não sigo nenhuma religião. A religião é uma instituição, e a espiritualidade é amor e ação. Eu acredito mais na espiritualidade.

Veja – O senhor acredita em Deus?

Adams – Não. Eu acredito na serventia do amor para todas as pessoas.

Veja – Em seus livros, o senhor diz que as pessoas não deveriam ter medo da morte. Pelo contrário, poderiam fazer dela uma diversão. Mas lidar com a morte quase nunca é fácil. Como é possível lidar com a morte com menos sofrimento?

Adams – Na vida, temos de fazer escolhas. Se não há como mudar o rumo dos acontecimentos, podemos optar por vivenciar cada momento de uma forma alegre, agradecendo por tudo de bom que tivemos durante a vida, por nossa família e nossos amigos. Ou, então, achar que a vida não valeu nada, ver só o lado negativo das coisas, esquecer tudo de bom que nos aconteceu até hoje e morrer de forma miserável. Morrer é uma das poucas coisas que ocorrem com todo mundo, mas quase ninguém suporta pensar nisso. O que estou sugerindo é que a morte não precisa ser exatamente uma experiência horrenda.

Veja – Não é difícil fazer palhaçadas para um paciente que vai morrer no dia seguinte?

Adams – Não, porque é o próprio paciente que opta por isso. Eu sempre pergunto: "O que você quer? Você quer ser miserável ou você gostaria de se divertir e ter momentos de alegria?" Se ele quer se sentir miserável no leito de morte, que seja miserável. Se ele não quer ser miserável, nós podemos brincar e rir com ele. É gratificante poder fazer algo de positivo para os pacientes, mesmo os terminais.

Veja – Nos hospitais, é mais fácil fazer brincadeiras com crianças que com adultos?

Adams – Isso varia muito de um paciente para outro, mas em geral as crianças são mais fáceis de lidar, porque, diferentemente dos adultos, elas não param para pensar e refletir sobre o que fazemos. Apenas vivenciam a experiência.

Veja – As escolas de medicina reconhecem hoje a eficiência de sua forma de tratar os pacientes?

Adams – Eu acho que a maioria não dá importância a isso. Grande parte dos médicos, infelizmente, ainda está mais preocupada em garantir seu salário no fim do mês. Eles não gostam da roupa que usam, não gostam de seus pacientes.

Veja – Suas idéias, que não eram aceitas no passado, são divulgadas hoje na maioria dos livros de auto-ajuda. O senhor considera isso uma vitória?

Adams – A verdade é que não criei nada disso. Tudo o que digo já era falado ao longo dos séculos. Palavras de solidariedade, de conforto, conselhos a quem se ama sempre foram passados de mãe para filho, de avó para neto desde que o mundo é mundo. O fato é que as pessoas só começaram a se interessar mais por isso recentemente.

Veja – O senhor costuma dizer que é mais palhaço do que médico. Por quê?

Adams – Porque, como médico, só posso tratar os pacientes quando eles têm algum problema de saúde. Já como palhaço posso alegrar as pessoas em qualquer lugar e a qualquer hora, independentemente de estarem elas doentes ou não. Além disso, ser palhaço é mais divertido.

Veja – O que o senhor achou do filme sobre sua vida?

Adams – Eu gostei do filme, mas achei que poderia ter tido mais emoção, ter sido menos morno.

Veja – Por quê?

Adams – Bem, porque o diretor não teve muita imaginação...

Veja – E da atuação de Robin Williams, o senhor gostou?

Adams – Sim, ele é uma excelente pessoa e um ótimo ator. Ele fez um trabalho fabuloso, todos os meus amigos acharam que ele conseguiu passar a minha essência de forma correta.

Veja – Há semelhanças entre o senhor e Robin Williams?

Adams – Nós somos parecidos em muitas coisas. Ele é muito generoso, tem compaixão pelas pessoas e é muito divertido. Mas também temos algumas diferenças de personalidade.

Veja – Que diferenças?

Adams – Ele é muito mais tímido que eu.

Veja – O filme mudou sua vida?

Adams – Mudou minha vida para sempre. O que não consegui arrecadar em três décadas para a construção do hospital do Instituto Gesundheit obtive em seis semanas. Mas continuei e continuo sendo a mesma pessoa de antes.

Veja – Então, o filme foi positivo para o senhor.

Adams – Ah, sim, sem dúvida. O filme rodou o mundo e fez com que as pessoas conhecessem meu trabalho. Em vários lugares, mesmo os que eu já havia visitado antes, as coisas se tornaram mais fáceis. Consigo falar com as pessoas mais rápido, elas sempre atendem aos meus telefonemas.

Veja – O senhor conhece os Doutores da Alegria do Brasil?

Adams – Sim, encontrei alguns palhaços que fazem um trabalho semelhante ao meu quando estive no Brasil, há alguns anos.

Veja – E o senhor gostou do trabalho deles?

Adams – Sim, muito. São bons colegas de profissão.

Veja – Seu nome verdadeiro é Hunter. Como surgiu o Patch?

Adams – Hunter é meu nome legal. Nem me lembro mais de como surgiu o Patch, foi há quarenta anos, já faz parte de mim. Como surgiu não tem mais importância.

Veja – Há algum sonho que o senhor ainda não realizou e gostaria que se concretizasse?

Adams – A paz mundial. Não haver mais crianças de rua. Ver as pessoas se ajudando mutualmente, todas as famílias se auto-sustentando. Tudo isso são sonhos. Pode parecer utópico, mas acredito que seja possível. É por isso que faço o que faço. Eu trabalho o tempo todo para concretizar meus sonhos. É por essa razão que estou concedendo esta entrevista. Se eu não acreditasse, não faria nada disso.

"O paciente é tratado como cliente de loja. Se o médico gastar tempo com amor, não tem retorno financeiro. Só ganha dinheiro se dá remédio ou faz alguma intervenção cirúrgica."

extraído do site: http://veja.abril.com.br/250204/entrevista.html