Não há só a rede de relações sociais. Existem as pessoas concretas, homens e mulheres. Como humanos, as pessoas são seres falantes; pela fala constroem o mundo com suas relações. Por isso, o ser humano é, na essência, alguém de relações ilimitadas. O eu somente se constitui mediante a dialogação com o tu, como o viram psicólogos modernos e, anteriormente, filósofos personalistas. O tu possui uma anterioridade sobre o eu. O tu é o parteiro do eu. Mas o tu não é qualquer coisa indefinida. É concretamente um rosto com olhar e fisionomia. O rosto do outro torna impossível a indiferença. O rosto do outro me obriga a tomar posição porque fala, provoca, evoca e convoca. Especialmente o rosto do empobrecido, marginalizado e excluído. O rosto possui um olhar e uma irradiação da qual ninguém pode subtrair-se. O rosto e o olhar lançam sempre uma proposta em busca de uma resposta. Nasce assim a responsabilidade, a obrigatoriedade de dar respostas. Aqui encontramos o lugar do nascimento da ética que reside nesta relação de responsabilidade diante do rosto do outro e particularmente do mais outro que é o oprimido. É na acolhida ou na rejeição, na aliança ou na hostilidade para com o rosto do outro que se estabelecem as relações mais primárias do ser humano e se decidem as tendências de dominação ou de cooperação. Cuidar do outro é zelar para que esta dialogação, esta ação de diálogo eu-tu, seja libertadora, sinergética e construtora de aliança perene de paz e de amorização. O outro se dá sempre sob a forma de homem e de mulher, são diferentes mas se encontram no mesmo chão comum da humanidade. Ambos realizam, em seu modo singular, a essência humana, abissal e misteriosa. A diferença entre eles não é algo fechado e definitivo, mas algo sempre aberto e plasmável, pois se encontram em permanente interação e reciprocidade. Na linguagem cunhada por C.G. Jung cada um possui dentro de si o animus (a dimensão do masculino) e a anima (a dimensão do feminino). O homem desperta na mulher sua dimensão expressa culturalmente pelo modo-de-ser- trabalho; a mulher evoca no homem sua dimensão feminina, concretizada historicamente pelo modo-de-ser-cuidado. Cuidar do outro animus-anima implica um esforço ingente de superar a dominação dos sexos, desmontar o patriarcalismo e o machismo, por um lado, e o matriarcalismo e o feminismo por outro. Exige inventar relações que propiciem a manifestação das diferenças não mais entendidas como desigualdades, mas como riqueza da única e complexa substância humana. Essa convergência na diversidade cria espaço para uma experiência mais global e integrada de nossa própria humanidade, uma maneira mais cuidada de ser.
do livro: Saber cuidar - Ética do humano - Leonardo Boff