Sobre Feitio de Rapé
Ultimamente, a toda hora, vejo anúncios de “feitio de rapé”, na internet. E fico a me perguntar: de onde esse povo tirou essa invenção? Soa, para mim, mais como ritual de igreja, e não algo produzido por pessoas de tradição que vivem na floresta. Para fazer rapé, nós, da etnia yawanawa, nunca necessitamos de ritual ou dieta. Isso está mais para uma apropriação cultural do uso do rapé por parte da sociedade não indígena. Infelizmente, por outro lado, também os próprios indígenas estão se aliando a alguns caras-pálidas para fazer o mesmo. Para deixar as ideias fluírem, vou “tomar” um rapé.
Voltando, lá vai textão.
O rapé, que meu povo chama de Rume, é um parceiro amigo do Uni (ayahuasca) e de outras medicinas usadas em nossos rituais. Os dois trabalham juntos. Nunca ouvi nenhuma história de se organizar uma rodada de pessoas para fazer rapé, o tal "feitio de rapé", conforme andam anunciando. Isso é invenção, modismo, deturpação do que para nós é simplesmente tradição. Infelizmente, na atualidade, estão produzindo rapé quase que em escala industrial para vender, transformar em mercadoria, ganhar dinheiro.
O rapé, não diferente de outras medicinas indígenas (Uni, pimenta, shabori, yopo etc.), desde tempos imemorias, é utilizado pelos povos indígenas como uma ponte do mundo físico para o mundo espiritual. É usado em ritual de cura pelo pajé (líder espiritual e curandeiro) e também no cotidiano, Nos anos 1980, muitos povos indígenas acreanos quase já nem utilizavam mais o rapé.
Foi a partir de uma retomada cultural e espiritual, que se deu a partir dos anos 1990, que os povos indígenas voltarem a utilizar o rapé. Hoje é utilizado por quase todos os povos indígenas amazônicos e virou modismo envolvendo brancos e indígenas, adeptos da new age do xamanismo, mais preocupados em deturpar uma sabedoria em troca de lucro fácil.
O rapé é preparado tradicionalmente pelo pajé, pelo aprendiz de pajé ou por alguém de confiança da aldeia que se dedica a fazer rapé pra si e pra comunidade. Não existe o pajé do rapé, o mestre do rapé, ou guru do rapé. É diferente do Uni. A pessoa que prepara o Uni e serve o Uni tem que ter uma iniciação xamânica, senão é como advogar sem ter registro na OAB.
O fazedor de rapé é uma pessoa que goza da confiança da aldeia, que se senta no canto da casa e começa a moer seu rapé dentro de uma taboca. Muitas vezes, sozinho em sua cabana, entre um cigarro e outro, joga conversa fora com os amigos que o visitam. Não existe nada desse pretenso pomposo “feitio de rapé”, com dieta, hinos, cocares, etc.
A sociedade ocidental gosta de etiquetar, idealizar, romantizar e rotular as coisas, como “feitio de rapé”. Soa assim bem de igreja, como feitio de daime. Deixa de ser uma coisa produzida na floresta, no silêncio da floresta. Cheguei até a ver na internet um curso para ser mestre e padrinho de igreja que tomam ayahuasca.
Onde vamos chegar com tanto comércio e modismos? Como indígena, devemos ter muito cuidado com essa apropriação cultural e o mal uso dessa medicina tradicional indígena. Mesmo que a cultura não seja estática e esteja sempre em movimento, é importante mantermos a essência e o respeito destes conhecimentos indígenas, pois é tudo o que a gente tem. Se não tomarmos cuidado e zelarmos por ela, corremos o risco de perde-la, ou perdemos o seu uso original, equilibrado e harmonioso. Sem elas, perdemos a nossa espiritualidade e sem espiritualidade não somos mais povos verdadeiros.
O rapé, depois de preparado, é guardado dentro de cano de taboca e acompanha seu dono para todo lugar que ele vai. Não se toma/passa/cheira rapé de qualquer pessoa, pois o rapé leva consigo, a força de quem o preparou. Inclusive, antigamente, as pessoas “envenenavam” as outras através do rapé.
Então fica o alerta: muito cuidado de quem você está adquirindo rapé.
Na época em que nosso povo foi contatado pelos patrões seringalistas, ao chegar na maloca de meu avô Antônio Luis Pekunti, o patrão branco, foi obrigado a tomar uma “rapezada” com meu avô. Ele fez aquilo porque queria conhecer ele, pra saber se ele era uma pessoa do bem ou do mal e para ver se ele era “homem” pra aguentar de pé um rapé Yawanawa. Como o patrão branco não caiu no chão e continuou de pé, ganhou o respeito de meu avô.
O rapé é uma medicina usada pelos nossos antigos para inspirar-se, clarear as ideias. Tomamos rapé logo pela manhã, pedimos a força de nossas ancestrais para abrir nosso dia com coisas positivas, irradiar bons pensamentos, enviando e desejando boas vibrações para nós, para nossos relativos e para o mundo. Toma (passa/cheira) rapé em diferentes situações. A mais comum delas é: a) rodada de Uni, numa cerimônia com todos da aldeia; b) o pajé toma para soprar numa pessoa enferma; c) o pajé sopra numa pessoa que está levando “uma peia” do Uni) d) toma-se pela manhã para “abrir o dia”; e) para ter inspiração numa conversa de aldeia.
Atualmente tem havido uma grande busca pelas medicinas indígenas. O rapé tem sido uma das medicinas mais difundidas e expandida no mundo. Com ele cresce também a responsabilidade de utilizá-lo com reverência, respeito e cuidado.
Se alguém já participou de uma “dieta do rapé”, ”feitio de rapé”, é preciso saber bem de onde veio essa inspiração: se aquilo surgiu daquele momento, para aquele situação, se foi criada com aquele propósito, para aquele experiência. A cultura continua em movimento e ela se adapta ao tempo que estamos vivendo. Tudo depende do que estamos abertos a vivenciar.