CHEGUE NA PAZ

6 de jan. de 2011

Ano morto, ano posto.

É tanta a urgência da vida
Que ela verte homicida
Ao rei que urgia morrer
Nem o deixaram esfriar

Outro lhe sucedia
À hora do mesmo dia

Vejam pois se vale viver
Neste estado suicida
Ou se é melhor aprender
A usufruir da vida.

Sim, como os reis: morre-se e nasce-se. Fina-se e faz-se um exame de consciência, como se fosse um julgamento relâmpago, ao recordar os fatos passados na fluidez dos instantes, os mais vincados na memória,
os mais marcantes, e com os quais sobrevivemos durante 52 semanas repentinas num corrupio frenético. Como num filme em vídeo, alta velocidade, reward - forward. Balanço final: valeu a pena, não valeu?

Os lutadores dizem sim, e os perdedores desalentados dizem não.
Vale sempre a pena, a quem tenha uma alma e o coração do tamanho deste mundo na sua proporção macro e micro.

Mesmo que a vida tenha sido madrasta, mesmo que o ambiente, o 'habitat', onde labutamos não tenha sido pródigo, só vencem os corajosos, os que não se deixam derrotar, os teimosos pelos ideais mais justos, os ousados na inovação, e, corretores da imperfeição, sejam quais forem as contrariedades pelas quais passaram. Dos erros extrair-se-ão as lições que animam a prossecução de objetivos humanos, sublimadores, com um fito redentor de queda em elevação, até à perfeição possível no final.

Querer muito é possuir sempre pouco. Nunca chega, nunca basta!
Querer pouco é obter-se constantemente mais do que se espera. Ao trabalhar, tudo o que se consegue é uma bênção acumulada a outras graças. A felicidade está mesmo aqui, é este o cerne da questão essencial e primordial, esta que vale a pena interiorizar para nosso Bem, e Bem dos outros; é preciso agarrá-la de cernelha e pelo rabo, para não se ficar vencido e maldizente.

A quem perde tudo o que amealhou durante boa parte da sua existência, resta-lhe ficar a desenhar flores como um ser feliz, ou desistir com a arrogância e a loucura do covarde! Desistir é a morte do suicida, desenhar flores é ter esperança na magnanimidade do espírito da terra, onde habitamos como peregrinos, compartilhando dos bens que ela nos oferece pródiga e gratuitamente. Nunca ninguém pagou nada por ter nascido e ter sido hospedado numa casa que não é sua, usufruindo de todos os seus bens, ainda que mal repartidos. E tanto pode usufruir como sendo digno dela, quanto pode estragá-la até a tornar inabitável, ou conspurcada, especialmente a parte que lhe está reservada.

Houve alguém que depois de vários infortúnios e erros, perdeu tudo o que tinha, e tinha amealhado bastante, mas não se deixou abater, nem perdeu
a alma. Recomeçou do zero e conseguiu reconstituir a dignidade da sua existência na esperança de dias melhores. O dia de hoje, bem aproveitado e vivido, prepara e melhora o de amanhã. Outro alguém deixou-se aniquilar pela má sorte e procurou a morte pelas suas próprias mãos. Eis a diferença entre o corajoso e o perdedor.

Claro que é difícil e penoso ser-se corajoso. Se assim não fosse, o executante não seria digno de admiração, muito embora deixar-se vencer e desistir da luta seja mais cômodo, mas esta postura não traz dignidade à vida humana; é ser vencido pela parte mais fraca.

Antes, ou no momento, da extinção ilusória de cada ano, percorre-nos o frêmito da espiritualidade, traduzido e revelado na emotividade própria da quadra natalícia. Já fomos crianças, e, por conseqüência, emerge bastante da nossa meninice nesta época; são as recordações que chegam à memória, as reminiscências de afetos e paixões, neste momento afluindo ao coração particularmente emocionado por causa do ambiente comunitário, despoletado nesta quadra do ano... É o nosso retorno; deslumbramo-nos com a alegria da vida que nos embala, e, consequentemente, com o calor, que das crianças emana também...
A nossa indiferença residual é contagiada, e o amor irrupto dilui-a: provando-se assim que a vida é, sobretudo, afeto e ternura, nas palavras e nos gestos; estes desfazem a aridez de uma vida sem destino, ou, erroneamente projetada em objetivos fúteis e precários. Deixemo-nos vencer, então e, por conseguinte, isso sim, pelo carinho envolvente, e ele inundar-nos-á a existência.

Sim, como os reis: ano morto, ano posto. Não é por morrer uma andorinha que acaba a primavera, como diz um dos nossos fados paradigmáticos!
Se o ano que morreu não foi o melhor da nossa vida, se ele foi até o pior da nossa existência, reconheçamos que a culpa foi nossa, e só nossa. Só assim poderemos aperfeiçoarmo-nos e progredirmos.

Reconheçamos que cometemos erros que nos abalaram, e estamos dispostos a corrigi-los, com ou sem ajuda. Se for com ajuda tanto melhor. Isso significa que ainda temos amigos, esses baluartes e anjos do Bem
que ainda nos ajudam a descortinar belezas imperecíveis, e nos auxiliam também a ter esperança na vida advinda. Porém, se for sem ajuda, porque nenhum amigo nos reconheceu, nem se abeirou quando o infortúnio nos bateu à porta, o nosso renascimento também será compensador e edificante, e isto quer dizer que somos capazes de vencer as contrariedades com ânimo redobrado; embora seja mais difícil a superação da dor e do desalento, mais mérito colherá o protagonista, se não voltar a errar nos cometimentos posteriores semelhantes. Vencer sozinho é uma vitória hercúlea, digna da mais alta veneração.

Ano morto, ano posto, como os reis. O ano vindouro vai ser melhor que o transacto. Para tanto, vamos corrigir os nossos erros, vamos adotar uma atitude e postura mais humanas, mais amorosa perante a vida e em relação aos outros seres que nos rodeiam, vamos pedir menos para que o que recebermos sem contar, nos possa encher o coração de alegria; vamos dar mais, muito mais desses bens que até não são nossos, mas pertencem à Humanidade que nos fez nascer despojados de tudo, com a última morada à espera - a terra; ela aguarda-nos para que nela sejamos pulverizados sem levarmos conosco nenhum desses bens, que julgávamos ser vaidosamente nossos... Vamos dar aquilo que nos compete dar, não deixando que os nossos descendentes façam isso por nós; vamos dar, e dar-nos, mesmo contando e esperando não receber nenhuma retribuição. O prazer de dar pode ser maior do que o de receber. Como este, de vos dar a evidente revelação do que escrevo, sem nada pedir em troca, nem um agradecimento, contando sempre que posso ter ajudado alguém em alguma coisa num momento indeterminado. E é nesta satisfação, esta que foi, e é, toda e só minha, que fiquei e fico com a convicção de dar uma ajuda a quem pode precisar em qualquer momento. A retribuição estará porventura no agradecimento que faço àqueles que já me ajudaram, quando precisei, sem me pedirem nada em retribuição.
E como precisamos uns dos outros, creio também que devemos ajudar-nos todos, assim, generosamente, sem nenhuma graça ou bênção, as quais aparecerão de certeza, independentes de nós, para nossa alegria constante.

Do erro fiz minha escola
E apesar de tudo perdido
Prestes a pedir esmola
À busca de outro sentido
Quase rota a sacola...

Ergui-me sem nunca ter percebido
Nem lido
Qual seria essa mola
Nesta energia que assola
E que nos ergue após caídos
Sem nos sentirmos esvaídos
Quando o infortúnio bate à porta
Com a alma quase morta.

Com confiança me ergo
Sempre em união permanente
Na esperança que te devo.

Poeta Armando Figueiredo
(Daniel Cristal)
1996 . Portugal