4 de jan. de 2017


Chacina de Campinas: 
nós, homens, precisamos discutir 
nossa masculinidade.

Não chamem de tragédia, apenas. Foi uma tragédia, mas foi sobretudo um crime horrendo, uma chacina bárbara, cometida por um assassino que a planejou meticulosamente, desde as armas utilizadas até a data escolhida para seu cometimento. Um crime covarde porque colheu a todos de surpresa, quando uma família brindava a passagem do ano e sequer poupou o próprio filho, a quem dizia amar, em meio a essas cartas messiânicas e canalhas. Cartas publicadas sem o menor pudor pela mídia, que horror.

Não digam que o móvel do crime foi o fascismo, por favor, poupem-nos disso. O móvel do crime foi ódio misógino e machista levado a um nível absurdo, mas em que ele, o matador, um homem com idéias fascistas, com ideário fascista, com o pensamento raso dos fascistas, matou pelo mais velho e conhecido machismo. Ao final, seja por covardia, seja por soberba, rejeitando qualquer espécie de julgamento ou punição, já destruídos quem queria destruir, ele se matou.

Não digam que os culpados são os de sempre, os pastores de sempre, os que pastoreiam suas ovelhas carnívoras, os deputados canalhas de sempre, que homenageiam torturador que foi desprezado pelos torturadores de sua época. Quem invadiu a casa, quem saltou sobre o muro, quem matou criança, mulheres e seus maridos, todos desarmados, todos sem esperar a morte brutal que lhes viria, fez isso porque não suportava ter que responder a uma lei, por ele chamada de Vadia da Penha, não admitia que sua ex-esposa pudesse representar para ele algum freio e que estivesse protegendo o menino, filho do casal, que dizia odiar o pai brutal, violento e abusador.

Não culpem a morosidade da Justiça, não culpem as restrições impostas até unilateralmente, porque quando se trata de uma tutela de proteção ante uma grave e verossímil possibilidade de abuso, as urgências se apressam ainda mais. Quem decidiu reduzir as visitas estava corretíssimo e o desenrolar pavoroso dos fatos deu razão a quem limitou as visitas do assassino ao filho que matou.

O machista não vive em uma caverna, isolado. Ele interage em sociedade, trabalha, consome, passeia, tem amigos, está nas redes sociais e é acolhido por muitos, a maioria de nós homens, como “um cara do bem, mas meio descontrolado, ciumento, quer o melhor para sua família”. A cultura que nos envolve é machista, a ponto de ele conseguir imaginar que se justificava, que representava os homens, ao “protestar” contra a Lei Maria da Penha e a crer que seu gesto teria seguidores.

Na carta em que destila seu ódio e seu preconceito machista, estão as ideias da mulher submissa, que o decepcionou, por não ser quem ele gostaria que fosse ou por não se comportar na maneira por ele determinada. Vadia é seu conceito da mulher que não atende às suas expectativas, bem ao gosto da cultura patriarcal e machista, recorrente e que – reconheçamos – assistimos a todos os dias, em nossas casas, ambientes de trabalho, escolas, bares, etc. Ele julgou e condenou a ex-esposa, o filho e todos os que a apoiavam.

O discurso que ele escreveu não é inédito, não surpreende, não tem nenhum dado criativo pela estúpida razão de se tratar de um discurso comum, clichê. Todos já o ouvimos de algum parente nessa comilança de fim de ano e rimos, achamos graça, alguns de nós lhes demos razão, “porque antes era melhor, havia ordem e cada um sabia de seu lugar”.

Precisamos falar mais disso, nós, homens machistas, sexistas, provedores patriarcais, nós, que compramos a revista para ver a bunda da atriz, precisamos falar sobre isso quando decidimos que filha nossa não pode sair vestida feito puta, que não suportamos nossas mulheres quando bebem, mas adoramos ver nossas colegas de trabalho bêbadas para que sobre alguma chance de terminar o happy-hour no motel.

Precisamos falar mais sobre as vadias, precisamos nos aproximar da vadiaque há de existir em nossas mães, esposas e filhas, precisamos falar e falar, até perder o medo de reconhecer que precisamos matar urgentemente essa cultura devastadora. Precisamos falar, precisamos reconhecer: essas mulheres e seus maridos, a criança, uma criança!, morreram porque os braços estúpidos que os mataram encontraram espaço para crescer nessa cultura machista, misógina, racista, que nos deixa furiosos, purificadores autocentrados, em nome de um deus de quem quero distância.

Precisamos tratar a igualdade de gênero e de raça como questões de sobrevivência, de única forma de sobrevivermos com um mínimo possível de dignidade, como única maneira de dividirmos o espaço terreno entre irmãos e irmãs. Enquanto a pauta de direitos humanos no Brasil pertencer a um segmento, à esquerda, esses homicídios se repetirão, transgêneros ou quem os proteja serão chacinados, mulheres e crianças serão mortas em nome de um justiçamento que muito se aproxima de toras de intolerância jogadas contra um pequeno bote.

Que se inclua na pauta das escolas, nos sermões cristãos e anti-cristãos, nas torcidas organizadas, nos sindicatos, nos clubes, nas reuniões burguesas, em qualquer lugar.

Nenhum governo poderia ser composto com representantes do sexo feminino, todavia, com divisão de igualdade e dignidade. Nenhum seminário de estudos em qualquer ramo do saber científico poderia se instalar se não houvesse igualdade real e efetiva de gênero e raça; se formos convidados, deveremos verificar. De minha parte, farei isso.

Em Ruanda, depois do massacre que matou, em poucos meses, mais de 800.000 pessoas, uma lei passou a proibir, sob pena de prisão, que se pergunte às pessoas a qual etnia pertence. A dor do massacre ensinou o caminho e as ferramentas para a igualdade.

O machismo não morrerá de morte morrida, tampouco pela evolução. Já evoluímos em tudo e nunca demos um passo de importância para sairmos desse atoleiro preconceituoso e genocida em que nos metemos, porque fomos cavando e abrindo vielas para um machismo líquido e que passa imperceptível, muitas vezes.

O assassino se matou e não haverá punições.

Mas, não se preocupem, muitos iguais a ele estão por aqui, bebendo e comendo conosco, trabalhando conosco, recebendo nosso abraço todos os dias. Nós fortalecemos esses assassinos, até conseguimos explicar o mal terrível que causam; quando indefensável, dizemos que se trata de um doente.

Machismo não é doença. É falha de caráter, de caráter coletivo.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.