25 de nov. de 2012

Trazido da África, o hábito não sobreviveu ao desaparecimento do ócio.

Gilberto Vasconcellos
(especial para a Folha) 



Os dedos moles da mão penetrando a cabeleira da cabeça. O hábito coletivo de catar piolho com as unhas estalando para adormecer. Isso é o cafuné, derivado do africano "kafiné". Veio de Angola trazido pelos portugueses para o Brasil.
É o "fingir estalidos inseticidas", a que se referia o escritor Camilo Castelo Branco. Esse delicioso estalido produzido pelo diálogo do dedo polegar com o indicador está fixado ainda hoje no folclore vivo ainda hoje de Luís da Câmara Cascudo.
O cafuné calado não tem graça. O bom cafuné é gemido. Quase gritado. A "carícia estalejante" é feita pela fricção da ponta dos dedos. Sobreviveu além da escravidão. Mimo, carícia, volúpia, êxtase, narcótico, entretenimento, além de terapêutica à insônia.
Em célebre artigo sobre a "psicanálise do cafuné", escrito na década de 40 durante o Estado Novo getuliano, o sociólogo francês jansenista Roger Bastide inicia uma viagem gnosiológica na qual se converterá em babalorixá do candomblé brasileiro. Professor xangô, filósofo do transe, hegeliano e gidiano, viveu uma revolução psíquica e epistemológica única na história das letras e ciências humanas.
Ele considerou falsa a explicação profilática: o cafuné independe da catação de piolhos em meninos, homens e mulheres. Trata-se de uma distração e, antes de tudo, de alguma coisa apetitosa que dá prazer, tal qual o baile ou o teatro. O ensaísta espanhol Ortega y Gasset dizia que o melhor jeito de se conhecer uma sociedade era por meio de seu "programa de prazeres". Diga-me como você se diverte que eu lhe direi o que você é. Na França o poeta Arthur Rimbaud adorava com volúpia que as suas irmãs lhe catassem os piolhos da cabeça.
Roger Bastide faz a análise microscópica da superestrutura do ócio escravista focalizando a prática do cafuné, depois de passar pelo marxismo, psicanálise e surrealismo europeus, conhecendo em profundidade os autores brasileiros Gilberto Freyre, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo.
Na interpretação de Bastide o senhor de engenho é um marido displicente envolvido na gandaia com as escravas, enquanto a patroa branca fica entregue a um gineceu de mucamas pretas e de empregadas domésticas. Considerado uma espécie de bode polígamo, o senhor de engenho separou sua vida marital de sua vida amorosa.
Segundo o mestre da USP, o cafuné foi um substituto das curtições lésbicas entre as mulheres do Brasil colonial. Onanismo simbólico. Essa sublimação tão culturalmente brasileira possui uma geografia com o seguinte detalhe: São Paulo, "sociedade de extrovertidos" com bandeirantes e fazendeiros de café, não está incluída na geografia do cafuné, essa "festa da preguiça". Evidentemente não foi o xampu que matou o libidinoso passatempo do cafuné. O que o matou foi o desaparecimento progressivo do ócio, segundo Luís da Câmara Cascudo. Para Roger Bastide, foi a passagem da família patriarcal para a família conjugal: o casamento de amor eliminou o cafuné.
As horas "dopolavoro" ganharam outros divertimentos, bar, restaurante, boate, discoteca, Internet, de modo que o espírito videoclipe não assimilou a herança de Angola. O holandês Johann Huizinga, insigne historiador de "Homo Ludens", reclamaria com certeza do desaparecimento do cafuné na África e no Brasil.
Tivesse-o experimentado, cabeça recostada no colo de alguém, curtindo o processo sinestésico, possivelmente o semiólogo Roland Barthes reconheceria no cafuné a configuração de uma verdadeira epistemologia. Destarte, o indispensável etnólogo Luís da Câmara Cascudo já escrevera: "Saber por cafuné".


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Gilberto Vasconcellos é professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.