7 de out. de 2012

O amor é a cura

Em uma cidade qualquer deste mundo morava um homem muito solitário. Até aí nada de novo ou surpreendente, pois em todas as cidades há pessoas, homens e mulheres, muito solitárias. Mas esse se imaginava muito mais  solitário, de verdade. E a sua solidão era tão forte que, ele próprio, ao olhar no seu rachado, manchado e quase opaco espelho, falava a si próprio: - como vai? E ele próprio respondia: vou só.
Não tinha amigos, colegas, conhecidos, adversários, confidentes, amores, ex-amores ou parentes. Morava só, no fim de uma rua esburacada, num casebre velho que nem chave tinha, bastava uma tramela por dentro e um pano que servia de calço ao sair pela única porta. Herdara de uma tia-avó que morrera tísica, o único parente que lhe restara, pois a mãe faleceu no seu parto e nunca conheceu o pai. Herdara era maneira de dizer, pois nem a tia, tampouco ele, tinha qualquer documento de propriedade.Também ninguém se importava com isso.
Era biscateiro. Pintava ruim, as torneiras consertadas logo voltavam a vazar, os pregos pregados saiam tortos, as paredes rebocadas nunca ficavam lisas e, um dia, ao se meter a eletricista, levou um choque, caiu da escada e daí levado a um hospital público com politraumatismo. Ficou em coma e ao acordar não se lembrava sequer do nome do hospital onde estava. Sabia ser grande, fracas luzes, cheirando a urina e a éter, ouvindo dia e noite choros, gemidos e gritos, e as pessoas de branco o tratando apenas como o prontuário 35 da enfermaria 07.
Engessaram braços, tronco e pernas. Enfaixaram a cabeça. Ninguém dizia seu nome, não falavam com ele. Apenas aplicavam injeções, faziam curativos, abriam sua boca e colocam pílulas com um pouco de água. Todo engessado criara escaras nas costas. Ele sabia que ia morrer, até porque a vida não o interessava mais.
            Gemia baixo até quando sentiu que uma auxiliar de enfermagem o tratava com muito carinho. Não sabia nada de amor, mas notou que ela ficava mais tempo que as outras ao lado dele.Limpava-o, penteava seu cabelo, brincava com ele, mas pouco se falavam.Os olhos eram os mensageiros.Ela aparecia pela manhã e ficava até o fim da tarde. Às vezes, pela madrugada. Tirava turnos de colegas, o cobria de atenções e sempre arranjava uma comidinha extra. Ele foi dando atenção à vida. Viu-se pedindo a Deus para ficar bom.
 Um ano depois, estava sarado, com pequenas seqüelas e uma carteira de aposentado na mão rendendo um salário mínimo mensal. Olhou para a auxiliar de enfermagem, a sua, ao sair do hospital e criou coragem para perguntar: quer morar comigo? Ela respondeu: não. Você é que vai morar comigo. E saiu protegendo o seu ainda lento andar. O dia estava claro e as nuvens brincavam nos céus.
 
         João Soares Neto é membro da Academia Fortalezense de Letras