Em
uma cidade qualquer deste mundo morava um homem muito solitário. Até
aí nada de novo ou surpreendente, pois em todas as cidades há
pessoas, homens e mulheres, muito solitárias. Mas esse se imaginava
muito mais solitário,
de verdade. E a sua solidão era tão forte que, ele próprio, ao
olhar no seu rachado, manchado e quase opaco espelho, falava a si próprio:
- como vai? E ele próprio respondia: vou só.
Não
tinha amigos, colegas, conhecidos, adversários, confidentes,
amores, ex-amores ou parentes. Morava só, no fim de uma rua
esburacada, num casebre velho que nem chave tinha, bastava uma
tramela por dentro e um pano que servia de calço ao sair pela única
porta. Herdara de uma tia-avó que morrera tísica, o único parente
que lhe restara, pois a mãe faleceu no seu parto e nunca conheceu o
pai. Herdara era maneira de dizer, pois nem a tia, tampouco ele,
tinha qualquer documento de propriedade.Também ninguém se
importava com isso.
Era
biscateiro. Pintava ruim, as torneiras consertadas logo voltavam a
vazar, os pregos pregados saiam tortos, as paredes rebocadas nunca
ficavam lisas e, um dia, ao se meter a eletricista, levou um choque,
caiu da escada e daí levado a um hospital público com
politraumatismo. Ficou em coma e ao acordar não se lembrava sequer
do nome do hospital onde estava. Sabia ser grande, fracas luzes,
cheirando a urina e a éter, ouvindo dia e noite choros, gemidos e
gritos, e as pessoas de branco o tratando apenas como o prontuário
35 da enfermaria 07.
Engessaram
braços, tronco e pernas. Enfaixaram a cabeça. Ninguém dizia seu
nome, não falavam com ele. Apenas aplicavam injeções, faziam
curativos, abriam sua boca e colocam pílulas com um pouco de água.
Todo engessado criara escaras nas costas. Ele sabia que ia morrer,
até porque a vida não o interessava mais.
Gemia baixo até quando sentiu que uma auxiliar de enfermagem
o tratava com muito carinho. Não sabia nada de amor, mas notou que
ela ficava mais tempo que as outras ao lado dele.Limpava-o, penteava
seu cabelo, brincava com ele, mas pouco se falavam.Os olhos eram os
mensageiros.Ela aparecia pela manhã e ficava até o fim da tarde.
Às vezes, pela madrugada. Tirava turnos de colegas, o cobria de
atenções e sempre arranjava uma comidinha extra. Ele foi dando
atenção à vida. Viu-se pedindo a Deus para ficar bom.
Um
ano depois, estava sarado, com pequenas seqüelas e uma carteira de
aposentado na mão rendendo um salário mínimo mensal. Olhou para a
auxiliar de enfermagem, a sua, ao sair do hospital e criou coragem
para perguntar: quer morar comigo? Ela respondeu: não. Você é que
vai morar comigo. E saiu protegendo o seu ainda lento andar. O dia
estava claro e as nuvens brincavam nos céus.