23 de dez. de 2011

Meu céu não é igual ao seu...

"Ainda bem que cada pessoa tem seu jeito de ser." (Rubem Alves)

O céu estava enfarruscado. O vento soprava nuvens cinzentas desgrenhadas. Nem lua nem estrelas. Bem dizia minha mãe que em dia de chuva elas se escondem, por medo de ficarem molhadas. A gente se lembrou de Prometeu: foi ele quem roubou dos deuses o fogo - por dó dos mortais em noites iguais àquela. Se não fosse por ele o fogo não estaria crepitando no fogão a lenha. O fogo fazia toda a diferença. Lá fora estava frio, escuro e triste. Na cozinha estava quentinho, vermelho e aconchegante.

No fogo fervia a sopa: o cheiro era bom, misturado ao cheiro da fumaça. Comida melhor que sopa não existe. Se eu tivesse de escolher uma comida para comer pelo resto de minha vida, não seria nem camarão, nem picanha, nem lasanha. Seria sopa. Sopa é comida de pobre, que pode ser feita com as sobras. Pela magia de fogo, caldeirão e água, qualquer sobra vira sopa boa. Tem até a estória da sopa de pedra...

O fogo é um poder bruxo. Tem o poder de irrealizar o real: os olhos ficam enfeitiçados pela dança das chamas, os objetos em volta vão perdendo os contornos, acabam por transformar-se em fumaça. Quando isso acontece começam a surgir, do esquecimento em que estavam guardadas, as coisas que a memória eternizou. O fogo faz esquecer para poder lembrar. Digo sempre para os meus clientes que, ao invés do divã, que lembra maca de consultório médico, eu preferiria estar assentado com eles diante de um fogão aceso. É diante do fogo qua a poesia aparece melhor. Não admira que Neruda tivesse dito que a substância dos poetas são o fogo e a fumaça.

"Antigamente eu costumava propor uma troca com Deus: um ano de vida por um só um dia da minha infância... Hoje não faço isso. Tenho medo de que ele me atenda. Não acho prudente, na minha idade, dispor assim dos meus anos futuros, pois não sei quantos ainda estão à minha espera..." Assim falou a Maria Alice com voz mansa, saudade pura. O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões a lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe.

"Quando eu era menina, lá em Mossâmedes, nas noites frias a gente se reunia na cozinha, todos assentados em volta de uma bacia cheia de brasas, os pés nos pauzinhos das cadeiras, era bom o calor do fogo nos pés frios."

"A mãe enrolava um pano na cabeça e dizia: 'Vou no quintal apanhar umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra nós' - e virava a taramela para abrir a porta da cozinha. O pai dizia sempre a mesma coisa: 'Mulher, você vai é ficar estuporada, de boca torta. Faz mal tomar friagem com corpo quente de fogo...' Mas a mãe nem ligava. Com as canecas quentes de chá na mão - como era bom o cheiro de folha de laranja! Posso até sentir ele de novo! -, a gente pedia ao pai pra contar estórias. Ele contava. Eram sempre as mesmas. A gente já sabia. Mas era como se ele estivesse contando pela primeira vez. Vinham sempre o assombro, o medo, os arrepios na espinha."

Aí ela parou e começou a divagar. Lembrou-se de um tio.

"Naquele tempo as pessoas eram diferentes. Pois esse meu tio tinha, na frente da casa dele, uma sala grande, vazia, que nunca era usada. Houve gente que quis alugar a sala - ele receberia um bom dinheirinho por ela. Recusou. E se explicou: 'Não alugo, não. É dessa sala que eu vejo a chuva vindo, lá longe. Se eu alugasse ficaria triste quando a chuva viesse...' É, as pessoas eram diferentes..."

Aí ficamos em silêncio, sem ter o que dizer, olhando o fogo. Quando se olha o fogo não é preciso dizer nada. A comunhão acontece em silêncio.

Lembrei-me da minha casa de infância, em Minas Gerais, casa velha, forro de esteira, assoalho de tábuas largas, já meio apodrecidas, goteiras sem conta nos dias de chuva. A gente não se afligia. Isso era normal. Telhado sem goteira era que era impensável. E era bom ouvir os pingos da chuva batendo nas panelas e bacias espalhadas pela casa. Era do mesmo jeito, nas noites frias. Com duas diferenças: a gente apagava a luz. Não por economia, mas para fazer a magia mais forte. No escuro os rostos refletiam as brasas, ficavam vermelhos contra o fundo negro. A imaginação ficava bêbada, as estórias mais fantásticas. A outra é que havia sempre o apito do trem de ferro. Vinha resfolegando, apitava na curva um gemido rouco e triste. Chamuscava a paineira velha com milhares de faíscas que saíam aos jatos, ejaculações incandescentes, e eu imaginava que assim tinham nascido as estrelas - eram faíscas de um trem de ferro cujo maquinista era Deus. Coisa estranha essa, que um trem de ferro seja ferro que dá saudade. Ferro lá tem alma?

A Adélia Prado, eu acho, concordaria. Se não concordasse não teria escrito:
"Um trem de ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento"... Era pobreza feliz.

No meio do silêncio a Maria Alice teologou em conclusão: "Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não é igual ao seu. Porque céu é o lugar onde a memória guarda as coisas amadas que o tempo roubou..."

Rubem Alves, nascido no interior de Minas Gerais, escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.
www.rubemalves.com.br

Extraído: Bons Fluidos - DEZ/2004 - Nº 67, Pág 48.