5 de jan. de 2011

Poesia: O Testamento do Mendigo

Agora, no fim da vida
Como mendigo que sou
Me sinto preocupado
Intrigado e num momento
Me pergunto, embaraçado
Se faço ou não testamento.

Não tendo, como não tenho
E nunca tive ninguém
Pra quem é que eu vou deixar
Tudo o que eu tenho: os meus bens?

Pra quem é que vou deixar
Se fizer um testamento
Minhas calças remendadas
O meu céu, minhas estrelas
Que não me canso de vê-las
Quando ao relento deitado
Deixo o olhar perdido
Distante, no firmamento?

Se eu fizer um testamento
Pra quem é que vou deixar
Minha camisa rasgada
As águas dos rios, dos lagos
Águas correntes, paradas
Onde às vezes tomo banho?

Pra quem é que vou deixar
Se fizer um testamento
Vagalumes que em rebanhos
Cercam meu corpo de noite
Quando o verão é chegado?

Se eu fizer um testamento
Pra quem vou deixar
Mendigo assim como sou
Todo o ouro que me dá
O sol que vejo nascer
Quando acordo na alvorada?
O sol que seca meu corpo
Que o orvalho da madrugada
Com sua carícia molhou?

Pra quem é que vou deixar
Se fizer um testamento
Os meus bandos de pardais
Que ao entardecer, nas árvores
Brincando de esconde-esconde
Procuram se divertir?
Pra quem é que eu vou deixar
Estas folhas de jornais
Que uso para me cobrir?

Se eu fizer um testamento
Pra quem é que eu vou deixar
Meu chapéu todo amassado
Onde escuto o tilintar
Das moedas que me dão
Os que têm a alma boa
Os que têm bom coração?

E antes que a vida me largue
Pra quem é que eu vou deixar
O grande estoque que tenho
Das palavras "Deus lhe pague"?

Pra quem é que eu vou deixar
Se fizer um testamento
Todas as folhas de outono
Que trazidas pelo vento
Vêm meus pés atapetar?

Se eu fizer um testamento
Pra quem é que vou deixar
Minhas sandálias furadas
Que pisaram mil caminhos
Cheias do pó das estradas
Estradas por onde andei
Em andanças vagabundas?
Pra quem é que eu vou deixar
Minhas saudades profundas
Dos sonhos que não sonhei?

Pra quem eu vou deixar
Se fizer um testamento
Os bancos dos meus jardins
Onde durmo e onde acordo
Entre rosas e jasmins?
Pra quem é que vou deixar
Todos os raios de luar
Que beijam minhas mãos
Quando num canto de rua
Eu as ergo em oração?

Se eu fizer um testamento
Pra quem é que vou deixar
Meu cajado, meu farnel
e a marca deste beijo
Que uma criança deixou
Em meu rosto perguntando
se eu era Papai Noel?

Pra quem é que eu vou deixar
Se fizer um testamento
Este pedaço de trapo
Que no lixo eu encontrei
E que transformei em lenço
Para enxugar minhas lágrimas
quando fingi que chorei?

Se eu fizer um testamento...
Testamento não farei!
Sem nenhum papel passado
Que papéis eu não ligo
Agora estou resolvido:
O que tenho deixarei
Na situação em que estou
Pra qualquer outro mendigo
Rogando a Deus que o faça
Depois que eu tiver morrido
Ser tão feliz quanto eu sou.

® Urbano Reis...