O ser humano-corpo-alma tem uma singularidade: pode sentir-se parte do Universo e com ele conectado; pode entender-se como filho e filha da Terra, um ser de interrogações derradeiras, de responsabilidade por seus atos e pelo futuro comum com a Terra. Ele não pode furtar-se a perguntas que lhe surgem ineludivelmente: Quem sou eu? Qual é meu lugar dentro desta miríade de seres? O que significa ser jogado nesse minúsculo planeta Terra? Donde provém o inteiro Universo? Quem se esconde atrás do curso das estrelas? O que podemos esperar além da vida e da morte? Por que choramos a morte dos nossos parentes e amigos e a sentimos como um drama sem retorno? Ora, levantar semelhantes interrogações é próprio de um ser portador de espírito. Espírito é aquele momento do ser humano corpo-alma em que ele escuta estas interrogações e procura dar-lhes um resposta. O ser humano como um ser falante e interrogante é um ser espiritual. Outro dado suscita a dimensão de espírito: a capacidade do ser humano de continuamente criar sentidos e inventar símbolos. Não se contenta com fatos. Neles discerne valores e significações. Escuta as coisas que são sempre mais que coisas porque se transformam em indicações de mensagens a serem decodificadas. Darei alguns exemplos. Diante do Rio Amazonas ficamos totalmente fascinados, fazemos a experiência da majestade. Ao penetrar na floresta, contemplamos sua inigualável biodiversidade e ficamos aterrados diante da imensidão de árvores, de águas, de animais e de vozes de todos os timbres, fazemos a experiência da grandeza. Diante dessa grandeza sentimos-nos um bicho frágil e insignificante irrompendo em nós o temor e o respeito silencioso, fazemos a experiência da limitação e da ameaça.
Quando vivenciamos o fascínio do amor, fazemos a experiência de um absoluto valor, capaz de tudo transfigurar; fazemos da pessoa amada uma divindade, transformamos o brilho do Sol num ouro em cascata e transformamos a dureza do trabalho numa prazerosa preocupação. Ao ver a mão suplicante da criança faminta, somos tomados de compaixão e mostramos generosidade. Todas essas experiências são expressões do espírito que somos nós. Mas há uma experiência testemunhada desde os primórdios da hominização, a do Numinoso e do Divino no universo, na vida e na interioridade humanidade. Como não reconhecer por trás das leis da natureza um supremo Legislador? Como não admitir na magnitude dos céus a ação inteligente de uma infinita Sabedoria, e na existência do Universo a exigência de um Criador? O ser humano chama essa suprema Realidade com mil nomes ou simplesmente dá-lhe o nome de Deus. Sente que Ele arde em seu interior na forma de uma presença que o acompanha e o ajuda a discernir o bem e o mal. O clã vital o leva a crescer, a trabalhar, a enfrentar obstáculos, a alcançar seus propósitos e a viver com esperança.
Esse clã está no ser humano, mas é maior que ele. Não está em seu poder manipulá-lo, criá-lo ou destruí-lo. Encontra-se a mercê dele. Não é isso um indício da presença de Deus em seu interior? O ser humano pode cultivar o espaço do Divino, abrir-se ao diálogo com Deus, confiar a Ele o destino da vida e encontrar nele o sentido da morte. Surge então a espiritualidade que dá origem às religiões. Elas expressam o encontro com Deus nos códigos das diferentes culturas. Os sábios de todos os povos sempre pregaram: sem o cultivo desse espaço espiritual, o ser humano se sentirá infeliz e doente e se descobrirá um errante sedento, em busca de uma fonte que não encontra em lugar nenhum; mas se acolher o espírito e Aquele que o habita, se encherá de luz, de serenidade e de uma imarcescível felicidade. Cuidar do espírito significa cuidar dos valores que dão rumo à nossa vida e das significações que geram esperança para além de nossa morte. Cuidar do espírito implica colocar os compromissos éticos acima dos interesses pessoais ou coletivos. Cuidar do espírito demanda alimentar a brasa interior da contemplação e da oração para que nunca se apague.
Significa especialmente cuidar da espiritualidade experienciando Deus em tudo e permitindo seu permanente nascer e renascer no coração. Então poderemos preparar-nos, com serenidade e jovialidade, para a derradeira travessia e para o grande encontro.
do livro: Saber cuidar - Ética do humano - Leonardo Boff