CHEGUE NA PAZ

27 de abr. de 2015


EU SEI, MAS NÃO DEVIA 
(Clarice Lispector)

Eu sei que nos acostumamos. Mas não devíamos. Acostumamo-nos a morar em apartamentos de fundos, e a não ter outra vista que não as janelas em redor. E porque não temos vista, logo nos acostumamos a não olhar lá para fora. E porque não olhamos lá para fora, logo nos acostumamos a não abrir de todo as cortinas. E porque não abrimos as cortinas logo nos acostumamos a acender cedo a luz. E à medida que nos acostumamos, esquecemos o sol, esquecemos o ar, esquecemos a amplidão...

Acostumamo-nos a acordar de manhã sobressaltados porque está na hora. A tomar o café a correr porque estamos atrasados. A ler o jornal no autocarro porque não podemos perder o tempo da viagem. A comer uma sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A dormitar no autocarro porque estamos cansados. A deitar cedo e dormir pesado sem termos vivido o dia...

Acostumamo-nos a esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem recebermos um sorriso de volta. A sermos ignorados quando precisávamos tanto ser vistos.

Acostumamo-nos a pagar por tudo o que desejamos e o que necessitamos. E a lutar, para ganhar o dinheiro com que pagar esses desejos e essas necessidades. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagaremos mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar...

Acostumamo-nos à poluição. Às salas fechadas, de ar condicionado e cheiro a cigarro. À luz artificial. Ao choque que os olhos sofrem com luz natural. Às bactérias na água potável.

Acostumamo-nos a coisas demais, para não sofrermos... Em doses pequenas, tentando não perceber, vamos afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá...

Se a praia está contaminada, molhamos só os pés e suamos no resto do corpo. Se o cinema está cheio, sentamo-nos na primeira fila e torcemos um pouco o pescoço. Se o trabalho está difícil, consolamo-nos a pensar no fim-de-semana. E se no fim-de-semana não há muito o que fazer, deitamo-nos cedo e ainda ficamos satisfeitos porque temos sempre o sono atrasado.

Acostumamo-nos para não nos ralarmos com a aspereza, para preservar a pele. Acostumamo-nos para evitar feridas. Acostumamo-nos para poupar a vida. Vida que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.