CHEGUE NA PAZ

3 de fev. de 2011

Viva a tristeza!

Não, não vou falar mal da tristeza, não seria justo. Eu devo a ela minhas profundidades, minha imaginação, minha volta por cima. Graças a ela vislumbrei coisas importantes pra mim. Músicas que várias pessoas conhecem. Cartas, textos, coisas que ninguém vai ler, mas que me serviram em algum momento. Mergulhei no pôr-do-sol, uivei pra lua, encostei a cabeça na janela naquele dia de chuva e ouvi a música mais linda do mundo.
Num dia triste, me sentindo fora do planeta, fui ao cinema e vi "Blade runner". Num dia soturno fui caminhar na praia e vi a onda mais azul, o céu mais infinito e o horizonte mais perfeito. Num dia triste li e reli Fernando Pessoa e não me senti só.
Num dia assim triste uma criança correu e abraçou as minhas pernas, cutucou minha esperança, me confundiu com alguém querido e me fez ligar pra alguém que eu amava.
Num dia cinza eu me senti viva e quis virar lápis de cor.
Num dia oco eu procurei motivos novos e antigos pra me preencher de novo e foi até divertido.
Num dia assim-assim trouxe um cachorrinho pra casa, que virou meu maior menor companheiro.
Num dia tristíssimo procurei por você e sua voz me encheu de sorrisos o resto do dia.
No dia mais triste do mundo eu perdi um amigo. No dia seguinte, ainda triste, agradeci por ter tido um amigo que me valesse tanto.
Num dia infinitamente triste eu cantei, minha voz era a voz da tristeza que percorria o meu corpo. E fiz um monte de gente feliz.
E também para que não percamos o poder de ação, precisamos olhar para a tristeza, precisamos nos indignar com ela, precisamos desejar a alegria genuinamente. Com essa mania de corrigir tudo no computador, acabamos facilitando nossa fragilidade diante de tudo. Ortografias, fotos, cores, sorrisos, a vida vai virando um show de Trumman de verdade!
Você ouve uma voz, mas não tem certeza se foi corrigida ou não, vê uma foto, mas não sabe se há silicone, injeções ou Photoshop, lê um texto e a autoria fica vagando pelos sites.
Um olhar positivo sobre a vida é sempre fundamental, mas, neste mundo em que vivemos, ter como exigência o riso é quase uma falta de respeito... Ou de consciência. Sei lá, vejo as pessoas querendo morrer de rir, muitas vão ao teatro só se for comédia, e isso me assusta um pouco. Se não entrarmos em contato com as consistências das coisas e suas eventuais tristezas, como podemos acreditar na alegria quando ela vem?

Zélia Duncan - Revista O Globo - 17/08/2008